THIS IS ONE MORE STORY FROM ALICE SALLES »

sábado, 16 de agosto de 2008

segundo capítulo


Quando abri a primeira carta, tinha um certo cheiro estranho a mim até então. Vim a entender com o tempo que era o cheiro do perfume barato que ela comprou numa farmácia depois de ter recebido o primeiro dinheiro do restaurante trabalhava - eles pagavam todo fim da semana. Ela borrifava algumas vezes a carta antes de colocar no envelope e alguns minutos depois de escrever pra não borrar a tinta. Tinha um cuidado tão delicioso com o que escrevia pra mim que o pouco do ressentimento que eu sentia por não ter sido uma amiga melhor, uma pessoa melhor para ela se desfazia nos primeiros instantes que eu tocava o papel que ela tinha cuidado especialmente para mim, mas no fundo ela era cruel, deixava claro sempre quem eu era na vida dela: alguém que ela queria e poderia ter sido e não foi.

"Nina, minha querida Nininha


Eu que não sou de mostrar algum amor assim com cara de gente que mal entende de amar não me contive ao escrever essa primeira linha pra você. Você é minha Nina. Eu acho que estaria mais feliz se pudesse ter sua companhia por aqui. A Holanda não tem nada de mais, não pra quem já viu cada fim de mundo, aqui o que é ruim e triste e feio e cheira mal é agradável ao meu ver. Posso estar enganada, penso que sempre estou. Sobre o que você me disse antes de eu partir: não, não poderei de maneira alguma te mandar emails , mensagens ou qualquer outra coisa que tenha que usar o computador para tal. Tudo que escrevo, escrevo a mão e acabei de conseguir em uma loja de antiguidades uma maquina de escrever bacanérrima que parece que foi usada por um escritor não tão famoso, mas local. Aqui eles tem escritores e poetas loucos encarcerados nas ruas, nos guetos, nas esquinas. O ar de Europa antiga se machuca ao dar de cara com a Europa antiga e os deuses não tem permissão de descer do limbo, por isso o povo perambula e não sabe o que fazer. Assim que sai do avião já dei de cara com alguns brasileiros, pulgas. Um grupo de brasileiros ricos fazendo turismo na Holanda que não é e nunca poderia ser deles. Eles tem aversão à realidade e eu a eles. Durante o dia também é frio aqui, a noite é de matar. Eu que nunca aprendi a usar casaco e blusa de lã tive que dar um jeito. Sua jaqueta colorida me salva e me entrega, se ando na rua com ela todos me observam como se fosse um animal esquisito. Eu gosto. Aqui, mesmo sendo estranha não sou julgada, pelo menos não em voz alta e talvez eu ainda esteja aqui há pouco tempo pra saber. Tenho comido salada daquelas caixas todo dia. Consegui um emprego num restaurante russo, eu lavo prato e afins. Acho que minha pele vai cair. Enfim, paga o quarto em um bairro aqui vizinho do Bairro da Luz Vermelha que tá prestes a fechar... aqui eu fiz um amigo até agora, o Mikix, um alemãozão fedido que me emprestou um abridor de latas no meu primeiro dia em Amsterdã, mal sabe ele que eu não tinha nenhuma lata pra abrir, só queria conhecer o vizinho. Sou uma peste. Nina, seja feliz por mim porque aqui só sei que estou pra fingir que fiz algo da minha vida, nem que seja quieta e no meu canto.

Meus beijos e meus abraços pra minha irmã linda que vai ser gente e vai me tirar da sarjeta.

Amém."


0 comentários: