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sábado, 16 de agosto de 2008

Primeiro Capítulo

-Mas que grande bosta!

Ela já começava a manhã com aquela cara de quem não quer acordar e sair pra rua com um guarda chuva e botas grossas nos tornozelos pra enfrentar a chuva e o trabalho longo e cansativo que ela teve que começar a fazer pra garantir alguma comida naquele estômago já acostumado com o vazio...

Ela não tinha paciência pra terminar uma frase. Saco. Ela mal tinha paciência pra começar uma frase com letra maiúscula, o que mais seria dessa vida de escritora dela se não conseguisse manter as palavras em ordem. ORDEM!? Era assim que as palavras eram impressas em sua cabeça, ora assim, ora com letrinhas todas miudinhas. Que coisa louca. Ela acordou, tomou banho, penteou o cabelo, aquela coisa toda. Saiu do apartamento e logo em seguida do prédio cafofo em que vivia. Ela morava numa área não muito segura de Amsterdã . "Pra que vim pra cá?", ela mal pensava sobre isso, mas tinha se arrependido até um certo ponto, mas queria provar pra todos, principalmente pra ela mesma, que ela podia viver sem reclamar...ha! Podia!? Ela me mandava cartas direto. Como se carta fosse email, sabe? Ela me disse que era a única coisa com que ela ainda gastava algum dinheiro - o pouco que ela dizia ter - e cada dia mais ela me mandava cartas pesadas. Como se nossa então amizade tivesse se transformado em algo único e necessário para a sua sobrevivência. Vou transcrever aqui algumas de suas cartas, e explicar do meu jeito o que ela queria dizer exatamente pelo o que ela estava passando, mas antes vou falar um pouco de nossa amizade, ok? Acho que você tem tempo pra isso certo, ja que está aqui perdendo tempo com esse livro meia- boca. Vamos lá.


Eu acho que tinha uns cinco ou seis anos de idade, será? Sei lá, depois verifico nas minhas caixas de fotos - estão todas na casa da minha mãe em Sorocaba, que agora mora sozinha. Enfim, a gente se conheceu porque o pai da Clarice morava três casas depois da minha na avenida Portugal, no Brooklyn em São Paulo. O pai dela tinha os fim de semana com ela, que vinha a pé da casa da mãe - com quem morava - há muitos e muitos quilômetros dali. Eu não entendia, mas hoje percebo que o que aconteceu mesmo foi que a mãe era vendedora em uma loja daquelas de "tudo um real" sabe? E o pai parece que fazia contrabando de penduricalho e eletro-domésticos e nunca tinha tempo pra filha, nem nos fins de semana que ela deveria passar com ele. É triste gente. De algum jeito ela cresceu sabida. Ela aparecia na porta da minha casa sexta-feira de noite e só ia embora domingo por volta das seis, quando o pai vinha bater na porta com um cigarro na boca e um baita cheiro de birita pra buscá-la. A coisa era feia.

Ela odiava a mãe, parece que tinha muitos namorados, e ela vivia me dizendo que preferia ser minha irmã então teria mais chances de "ser alguém" - ela usava essa frase demais da conta - e não de ser uma Maria ninguém que ia provavelmente acabar trabalhando na mesma lojinha que a mãe trabalhava. Eu tentava ajudar. Enquanto crescíamos eu a dava tudo, livros, comida e até roupa, meus pais ficavam com muita pena dela também e me contavam de como queria madotar a Clarice. "Clarice ...", minha mãe dizia, "um nome desse pra uma menina tão abastarda". E eu que não vinha de família rica nenhuma não conseguia entender o quão difícil era dar uma vidinha melhor pra uma criança, nem que fosse uma tal de esperança que nenhum dos pais dela tentou dar. Enfim, quando fiz 18 anos fui pra faculdade, passei suado na FUVEST e acabei sendo uma das melhores alunas de direito da minha turma na USP, a Clarice se mudou com o namorado dela, 20 anos mais velho e cheio de filho. Ela já tinha o cabelo multicor naquela época. Vinha me ver, como de costume, todo final de semana. A gente lia juntas, discutia e aí que ficou claro o quanto estávamos diferentes. Eu, de alguma forma querendo ou não, era muito influenciada por professores e colegas, até amigos completamente diferentes dela acabavam me influenciando mais do que minha amiga de infância, enquanto tudo que ela tinha pra usar vinha da cabeça dela, e da vida qualquer que ela estava vivendo - iria perceber mais tarde que valeria mais a pena...

Ela resolver sair do Brasil quando pela quinta vez foi chutada de onde morava por um outro namorado muito mais velho que ela. Veio até a mim chorando, meia-calça rasgada, bolsa de supermercado com algumas roupas e documentos e a cara toda suja de maquiagem velha. Ela cheirava a álcool como o pai dela há algum tempo atrás.

Me disse que estava perdida e que não tinha outra solução. "Tá vendo aqui" me mostrava um corte de jornal que tinha guardado no sutiã "é pra onde eu tenho que ir." Era um recorte falando sobre a maior competição de poesia e prosa da Europa, onde? Holanda. Ela queria ir pra terra das flores e das drogas livres. Medo. Medo que eu senti por uma amiga que talvez já tivesse perdido há muitos anos atrás, mas muito mais medo por não ter sido tão corajosa quanto ela. Tudo que ela me pediu foi algumas roupas emprestadas e uma mala, tinha a passagem já comprada com a ajuda da prima que trabalhava na TAM . O passaporte já estava pronto e esperando por ela há dois anos... Ela se foi naquela semana mesmo e levou meu endereço rabiscado num papel de pão também guardado a sete chaves no sutiã. Aquele sutiã guardava tudo...


Duas semanas depois recebi a primeira carta.

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