THIS IS ONE MORE STORY FROM ALICE SALLES »

domingo, 17 de agosto de 2008

Terceiro Capitulo

Cheguei em casa avoada hoje, foi um dia de trabalho que me cansou demais. Acho que deveria ter ido embora com Clarice. Dez anos atrás penso que era menos jovem do que sou agora e cada carta que retiro da gaveta pra transcrever aqui me da angustia, é uma sensação própria de quem esqueceu que sentiu algo algum dia.

Logo depois da primeira carta que recebi escrevi a resposta com muito carinho, achei que ela precisasse daquilo naquele momento mais do que nunca, mas me arrependi assim que coloquei a carta na caixa do correio, queria enfiar a mão la dentro e arrancar o envelope de volta, mas deixei passar. Me vingaria logo, ou não, não sei bem pois três semanas se passaram sem resposta dela até que recebi uma caixinha do correio que inconvenientemente era necessária minha assinatura para poder retirar. Fui relutante até a porta e assinei, estava de pijama ainda e o selo inconfundível era da Holanda. Por algum ataque meu de cinismo resolvi largar a caixinha na minha escrivaninha sem dar muita importância ao fato, meu marido diz que sou assim mesmo, desencantada com a vida e que nada me anima a ponto de ter formado uma ruga sobre minha sobrancelha esquerda que esta sempre levantada dando aquele ar de "não estou nem ai" pra minha fisionomia arredondada que se nao fosse pela ruga, pareceria mais com o rosto de uma doce menina do que da bruxa que sou. Depois de muitos dias fui lembrar de Clarice e corri até minha mesa como quem corre pra salvar o amante prestes a morrer enforcado, abri o embrulho com dor no peito - como pude fazer aquilo com minha amiga? Estava boquiaberta com meu próprio descaso e quis me punir, até ver o que estava la dentro.

A caixa era cor de rosa, mas não era uma cor só estampada e sim vários tons de rosa enquadrados dando a volta na caixa de presente. Havia um laço e ele era azul, cor que ela sabia que eu detestava. Tudo que existia dentro do embrulho era papel amassado e logo no centro encontrei uma pedra relativamente pequena - um quarto da palma da minha mão - e acinzentada, feia, como se fosse não uma pedra, mas um pedaço de asfalto. Nada escrito, nenhuma carta, nenhuma palavra, nada. Me senti estúpida e tonta por ter escrito a carta que escrevi antes e decidi não pensar a respeito. Larguei tudo, embrulho, pedra e papel na gaveta e fui cuidar de mim só pensando em Clarice com um rancor um pouco desmedido. Acho que só agora posso dizer com certeza que tinha inveja, e isso me faz sentir vergonha, não pelo sentimento de inveja em si, mas pela sensação de impotência com o que eu mesma sempre fui que ela trazia de volta à tona. Porque não posso me livrar disso como ela se livrou? Eu pensava, mas sei que tudo isso é besteira e não passa disso.

Um mês se passou e recebi outra carta que transcrevo aqui.

"Nina, MeNina,

Se tu vieres para cá
Não te esqueças do casaco,
Do tijolo,
Do relento.

As noites são frias e perigosas e...
Os dias?
Ah!
Como tu gostas...

Sol alaranjado como mexericas
e ruas rubras de amoras
Com o olhar cruel de quem não entende de cores
Como tu compreendes de flores...


Assinado: Clarice de Luto."


Nunca imaginei receber algo assim e à essa carta eu respondi com algo a altura:


"Clarice, MaLuquice

Que quis dizer com isso?
Presa estas, sobre a tortura de pertencer a ti
Sem pertencer a vida?

Diga-me, com que olhar te retiras
E com que temor esquece do porque de sua ida
Tao repentina,
Incerta,
Repreendida...

Assinado: Nina Simone - A cantora"

Dei risada ao assinar, gargalhadas mesmo e de tão altas me assustei com o barulho que produzira. Conseguia imaginar os dentes de Clarice no escuro, lendo a minha carta a luz de velas num quarto escuro e imundo em algum pedaço do mundo. O retrato perfeito de uma escritora que não escrevia, Clarice...

A amava de verdade.

sábado, 16 de agosto de 2008

segundo capítulo


Quando abri a primeira carta, tinha um certo cheiro estranho a mim até então. Vim a entender com o tempo que era o cheiro do perfume barato que ela comprou numa farmácia depois de ter recebido o primeiro dinheiro do restaurante trabalhava - eles pagavam todo fim da semana. Ela borrifava algumas vezes a carta antes de colocar no envelope e alguns minutos depois de escrever pra não borrar a tinta. Tinha um cuidado tão delicioso com o que escrevia pra mim que o pouco do ressentimento que eu sentia por não ter sido uma amiga melhor, uma pessoa melhor para ela se desfazia nos primeiros instantes que eu tocava o papel que ela tinha cuidado especialmente para mim, mas no fundo ela era cruel, deixava claro sempre quem eu era na vida dela: alguém que ela queria e poderia ter sido e não foi.

"Nina, minha querida Nininha


Eu que não sou de mostrar algum amor assim com cara de gente que mal entende de amar não me contive ao escrever essa primeira linha pra você. Você é minha Nina. Eu acho que estaria mais feliz se pudesse ter sua companhia por aqui. A Holanda não tem nada de mais, não pra quem já viu cada fim de mundo, aqui o que é ruim e triste e feio e cheira mal é agradável ao meu ver. Posso estar enganada, penso que sempre estou. Sobre o que você me disse antes de eu partir: não, não poderei de maneira alguma te mandar emails , mensagens ou qualquer outra coisa que tenha que usar o computador para tal. Tudo que escrevo, escrevo a mão e acabei de conseguir em uma loja de antiguidades uma maquina de escrever bacanérrima que parece que foi usada por um escritor não tão famoso, mas local. Aqui eles tem escritores e poetas loucos encarcerados nas ruas, nos guetos, nas esquinas. O ar de Europa antiga se machuca ao dar de cara com a Europa antiga e os deuses não tem permissão de descer do limbo, por isso o povo perambula e não sabe o que fazer. Assim que sai do avião já dei de cara com alguns brasileiros, pulgas. Um grupo de brasileiros ricos fazendo turismo na Holanda que não é e nunca poderia ser deles. Eles tem aversão à realidade e eu a eles. Durante o dia também é frio aqui, a noite é de matar. Eu que nunca aprendi a usar casaco e blusa de lã tive que dar um jeito. Sua jaqueta colorida me salva e me entrega, se ando na rua com ela todos me observam como se fosse um animal esquisito. Eu gosto. Aqui, mesmo sendo estranha não sou julgada, pelo menos não em voz alta e talvez eu ainda esteja aqui há pouco tempo pra saber. Tenho comido salada daquelas caixas todo dia. Consegui um emprego num restaurante russo, eu lavo prato e afins. Acho que minha pele vai cair. Enfim, paga o quarto em um bairro aqui vizinho do Bairro da Luz Vermelha que tá prestes a fechar... aqui eu fiz um amigo até agora, o Mikix, um alemãozão fedido que me emprestou um abridor de latas no meu primeiro dia em Amsterdã, mal sabe ele que eu não tinha nenhuma lata pra abrir, só queria conhecer o vizinho. Sou uma peste. Nina, seja feliz por mim porque aqui só sei que estou pra fingir que fiz algo da minha vida, nem que seja quieta e no meu canto.

Meus beijos e meus abraços pra minha irmã linda que vai ser gente e vai me tirar da sarjeta.

Amém."


Primeiro Capítulo

-Mas que grande bosta!

Ela já começava a manhã com aquela cara de quem não quer acordar e sair pra rua com um guarda chuva e botas grossas nos tornozelos pra enfrentar a chuva e o trabalho longo e cansativo que ela teve que começar a fazer pra garantir alguma comida naquele estômago já acostumado com o vazio...

Ela não tinha paciência pra terminar uma frase. Saco. Ela mal tinha paciência pra começar uma frase com letra maiúscula, o que mais seria dessa vida de escritora dela se não conseguisse manter as palavras em ordem. ORDEM!? Era assim que as palavras eram impressas em sua cabeça, ora assim, ora com letrinhas todas miudinhas. Que coisa louca. Ela acordou, tomou banho, penteou o cabelo, aquela coisa toda. Saiu do apartamento e logo em seguida do prédio cafofo em que vivia. Ela morava numa área não muito segura de Amsterdã . "Pra que vim pra cá?", ela mal pensava sobre isso, mas tinha se arrependido até um certo ponto, mas queria provar pra todos, principalmente pra ela mesma, que ela podia viver sem reclamar...ha! Podia!? Ela me mandava cartas direto. Como se carta fosse email, sabe? Ela me disse que era a única coisa com que ela ainda gastava algum dinheiro - o pouco que ela dizia ter - e cada dia mais ela me mandava cartas pesadas. Como se nossa então amizade tivesse se transformado em algo único e necessário para a sua sobrevivência. Vou transcrever aqui algumas de suas cartas, e explicar do meu jeito o que ela queria dizer exatamente pelo o que ela estava passando, mas antes vou falar um pouco de nossa amizade, ok? Acho que você tem tempo pra isso certo, ja que está aqui perdendo tempo com esse livro meia- boca. Vamos lá.


Eu acho que tinha uns cinco ou seis anos de idade, será? Sei lá, depois verifico nas minhas caixas de fotos - estão todas na casa da minha mãe em Sorocaba, que agora mora sozinha. Enfim, a gente se conheceu porque o pai da Clarice morava três casas depois da minha na avenida Portugal, no Brooklyn em São Paulo. O pai dela tinha os fim de semana com ela, que vinha a pé da casa da mãe - com quem morava - há muitos e muitos quilômetros dali. Eu não entendia, mas hoje percebo que o que aconteceu mesmo foi que a mãe era vendedora em uma loja daquelas de "tudo um real" sabe? E o pai parece que fazia contrabando de penduricalho e eletro-domésticos e nunca tinha tempo pra filha, nem nos fins de semana que ela deveria passar com ele. É triste gente. De algum jeito ela cresceu sabida. Ela aparecia na porta da minha casa sexta-feira de noite e só ia embora domingo por volta das seis, quando o pai vinha bater na porta com um cigarro na boca e um baita cheiro de birita pra buscá-la. A coisa era feia.

Ela odiava a mãe, parece que tinha muitos namorados, e ela vivia me dizendo que preferia ser minha irmã então teria mais chances de "ser alguém" - ela usava essa frase demais da conta - e não de ser uma Maria ninguém que ia provavelmente acabar trabalhando na mesma lojinha que a mãe trabalhava. Eu tentava ajudar. Enquanto crescíamos eu a dava tudo, livros, comida e até roupa, meus pais ficavam com muita pena dela também e me contavam de como queria madotar a Clarice. "Clarice ...", minha mãe dizia, "um nome desse pra uma menina tão abastarda". E eu que não vinha de família rica nenhuma não conseguia entender o quão difícil era dar uma vidinha melhor pra uma criança, nem que fosse uma tal de esperança que nenhum dos pais dela tentou dar. Enfim, quando fiz 18 anos fui pra faculdade, passei suado na FUVEST e acabei sendo uma das melhores alunas de direito da minha turma na USP, a Clarice se mudou com o namorado dela, 20 anos mais velho e cheio de filho. Ela já tinha o cabelo multicor naquela época. Vinha me ver, como de costume, todo final de semana. A gente lia juntas, discutia e aí que ficou claro o quanto estávamos diferentes. Eu, de alguma forma querendo ou não, era muito influenciada por professores e colegas, até amigos completamente diferentes dela acabavam me influenciando mais do que minha amiga de infância, enquanto tudo que ela tinha pra usar vinha da cabeça dela, e da vida qualquer que ela estava vivendo - iria perceber mais tarde que valeria mais a pena...

Ela resolver sair do Brasil quando pela quinta vez foi chutada de onde morava por um outro namorado muito mais velho que ela. Veio até a mim chorando, meia-calça rasgada, bolsa de supermercado com algumas roupas e documentos e a cara toda suja de maquiagem velha. Ela cheirava a álcool como o pai dela há algum tempo atrás.

Me disse que estava perdida e que não tinha outra solução. "Tá vendo aqui" me mostrava um corte de jornal que tinha guardado no sutiã "é pra onde eu tenho que ir." Era um recorte falando sobre a maior competição de poesia e prosa da Europa, onde? Holanda. Ela queria ir pra terra das flores e das drogas livres. Medo. Medo que eu senti por uma amiga que talvez já tivesse perdido há muitos anos atrás, mas muito mais medo por não ter sido tão corajosa quanto ela. Tudo que ela me pediu foi algumas roupas emprestadas e uma mala, tinha a passagem já comprada com a ajuda da prima que trabalhava na TAM . O passaporte já estava pronto e esperando por ela há dois anos... Ela se foi naquela semana mesmo e levou meu endereço rabiscado num papel de pão também guardado a sete chaves no sutiã. Aquele sutiã guardava tudo...


Duas semanas depois recebi a primeira carta.